domingo, 21 de agosto de 2011

Como se fosse afundar

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Ela era cheia de coisa. Mas se deixava esvaziar todas as manhãs cedo, pra poder se encher durante o dia. E já levantava contando seus passos, pra não passar dos limites. Parecia sempre no limite. No contorno que ela criara pra não exceder. Parecia cheia de medo. Medo de desvendar-se. E por isso não parava. Tinha receio de que qualquer demora lhe fizesse descobrir-se. Por isso ela corria. Pra um lado e pro outro. Só não queria parar. Na verdade ela já tinha pensado nisso, mas nunca tivera coragem.
O medo de desnudar-se às vistas alheias era bem maior. Preferia então, continuar com seus planos traçados. Num dia isso, noutro, aquilo. Mas não parecia satisfeita, e por mais que estivesse correndo, sempre achava que estava se arrastando, e que estava dando tempo de alguém vê-la mais demoradamente como ela era. E se estropiava pra chegar ao fim do dia completa. Mas sempre chegava achando que não dera conta. Ela tinha a mania de achar que o tempo nunca era o suficiente pras coisas que ela precisava fazer. E se julgava incapaz de caminhar como os outros porque nunca conseguira chegar ao fim do dia com aquele sentimento leve que tanto falavam. E se culpava por isso. Por ser pesada demais. E tinha medo de cair e não conseguir se reerguer. A sensação que tinha era de que sua fraqueza te condenaria a qualquer hora do dia. E fingia que seus ombros estavam leves. Mas todo mundo via. O peso em seus ombros era tanto que dava pra ver no olhar. Era um olhar cansado. Angustiado. Pra falar a verdade, não dava pra ver direito por que ela não permitia ser olhada com minúcia. E ela mesma já nem olhava ao seu redor. Não olhava pra não ser vista. Ela olhava o todo, pra não perder-se em nada. Parecia mesmo coisa de gente perdida. De alguém que de tanto se procurar, optou por não se cruzar por aí com seus reflexos nos outros. Alguma coisa devia ter acontecido pra que ela desandasse daquele jeito. Só podia ser isso. E talvez por isso ela estivesse tão destinada a não parar.
Aprendera a dizer que gostava de zum-zum-zum, de tic-tac e de todo aquele auê. Na verdade não dava pra saber ao certo. Ela era um mistério. Um mistério cultivado por trás de um muro que não se permitia bisbilhotar. Vez por outra era ela que esbarrava no próprio muro que erguera pra evitar esbarrões alheios.
Pequenina e bela. Mas não se permitia ser vista como era. Mas como ela era se nem mesmo ela sabia? Se sabia, não deixava ninguém se dar conta. E beirava o precipício vez por outra, impulsionada pela loucura de ser ela mesma. Ela devia ser bonita também por dentro. Mas achava que ninguém precisava saber disso. Tinha sim um riso largo que usava oportunamente, acompanhado de um olhar sutil, realçado pelo rímel que trazia na bolsa. Mas ela se culpava por isso. Não queria ser fútil, nem sabia ser. Ela era confusa. Ora, de cara limpa. Ora com medo de sair na chuva pra não se desmontar.
Ela precisava se aceitar. Precisava conviver bem com ela mesma pra depois se dar aos outros por inteiro. E se culpava por isso. Por ser vítima de um cativeiro que ela havia escolhido pra se prender.
Tinha medo de cair na vida de alguém. Tinha medo de amparar a queda de alguém em sua vida e não ter nada pra prometer. Ela não era presente pra ninguém, porque das experiências que tivera, ela se tornara passado, apenas. Já sentira cócegas no estômago antes. Algumas vezes, até. Mas parecia sempre a mesma coisa: as cócegas de borboleta, e o vazio insaciável depois do fim. E ela decididamente preferiu caminhar, sem parar. Isso pra não pedir repouso nos ombros de alguém e ter que experimentar a despedida antes do fim. 
Vive num cruzamento. Pra lá e pra cá. Indo e vindo. Vendo os buracos do tempo nas calçadas que caminha. Vendo gente ávida em tapar os buracos. E gente que não cuida das calçadas. E por vezes, tem que mudar o trajeto. E mudar é sempre um ‘back’ na sua via.
Antes dessa correria de agora, ela tinha o hábito de caminhar jogando os pés pra frente. Chutando pedrinhas. Contando paralelepípedos. Enfeitando os passos. Mas continuava se esvaziando e se enchendo todos os dias.
Ela tinha o mundo. O mundo era aquele. Do tamanho que cabia nos seus pés. Isso lhe bastava. Até que o tempo foi passando, e ela fora obrigada a aumentar o passo pra acompanhar o mundo que corria. Até que ela não cabia mais em si. E foi ver mar, que é infinito.
Ela queria ter um porto aonde chegar, e navegar pelo puro prazer de entrar no mar. Mas isso lhe faltava naquele momento. O seu barquinho parecia afundar, mesmo remando o tempo todo. E ela se culpava por não ter quem remasse com ela, ao mesmo tempo em que sentia alívio por não trazer ninguém pra afundar junto. Foi aí que resolveu fazer um barco só pra ela. Mas não podia ir tão longe. Era de papel. Estava amassado. Furado. E ia afundar.
Além do peso nos ombros ela guardava caixas antigas, cheias de lembranças. Ela sabia que uma hora dessas ia afundar. E aquele barquinho não suportaria. Não tinha o que fazer. Ela não se desfazia de suas coisas tão fácil assim. Começou então a medir distâncias e a calcular o espaço que tinha dentro de si. E receava a falta de concretude das coisas que guardava. E temia por à prova sua sensatez. Queria lógica e não mais improvisos. Imaginar-se sem controle tirava-lhe do chão. Suspendia seus pés dos passos contados. E a última coisa que ela queria naquele momento, era sentir que flutuava, como no tempo que só tinha amor na bagagem.
E se envolvia de mistério. Complicações. Às vezes endurecia. Outras vezes abobalhava-se. Era menina, era mulher. Doce, amarga e azeda. Sempre negara a ela mesma a possibilidade de ser ponto. Ela tinha tudo pra ‘reticenciar’ aquele mundo fechado. Permitia-se transpor. Estar aqui e acolá num barquinho de papel prestes a afundar. Recorria a isso pra ser aquilo, sem deixar de ser o que era:  metáfora.
Guardava uma culpa no peito, que talvez fosse o mais pesado na bagagem. Não queria embrutecer o coração dos pequenos, que nem ela, com essas coisas pesadas demais que ela cultivava agora.  O amor era mesmo uma coisa que lhe fugia. Não que não quisesse. É que nunca havia experimentado a plenitude um ‘felizes para sempre’.
E continuava com um amontoado de coisas espatifadas pelos cantos. Estardalhaço de cacos repartidos. Às vezes, mosaico colorido. Ela tinha encanto. Mas não queria viver com medo do barco afundar. Ela queria um pedaço de chão firme pra se aprofundar.
Ela sabia. Se pudesse teria deixado essas coisas no meio do caminho, no fundo do mar. Mas não dava. Ela acreditava que isso tudo tinha de ser levado pra onde ela fosse. Como parte dela. Até que se resolvessem, ou dissolvessem.
E quando vinham lhe falar de sonhos coloridos ela não queria saber. E não queria lápis de cor. Queria ver a manhã sem o sol que ela pintara de amarelo queimado no azul do céu refletido naquele mar tão grande. Ela queria ver o dia mesmo sem sol, cinza.  E ela nunca admitia que isso fosse amargura. E dizia pra ela mesma que era vontade de ver a vida sem os contornos de canetinhas ou de cola glitter. Era urgência de ver a vida sem acabamento, assim como ela. E morria de medo de desenhar a vida e misturar aos rascunhos jogados no lixo sem ao menos pintar.
E se ouvia: “Olha menina, não se pode viver o tempo todo com esse ponto aí. Essa interrogação na sua cabeça não faz bem, você sabe disso. Isso faz mal. E chega a hora em que o medo já não faz sentido. Ou você se convence do que quer de verdade, ou então você nunca vai sair do lugar. Porque se continuar desse jeito, todas as vezes que quiser  muito uma coisa, muito mesmo, esse muito vai ser tão pouco a ponto de fazer você guardar todas as fichas, e sair frustrada, com mais medo ainda. Tudo bem que o medo faz parte, que as 'polaridades' se entrecruzam 'vezenquando', mas isso não é desculpa pra levar uma vida inteira num barco de papel, à deriva. Não pense que você vai ter uma bola de cristal pra te mostrar como vai ser depois disso. Nem pense que você vai ter todas as chances de novo. Você sabe muito bem que nenhuma dessas chances que você já teve apareceu duas vezes. Você pode ter encarado da mesma forma, mas elas não eram as mesmas. O seu álbum não corre perigo de ter  figurinhas repetidas. Tudo aqui é único, até mesmo essas voltas que você dá no mesmo lugar. Você sabe muito bem que a cada volta você já não é a mesma. E mais uma coisa é essencial que você saiba, porque não é possível que com tantas lições você não tenha aprendido que nada em sua vida vai fazer sentido se você ficar esperando isso de alguém. A verdade é que você precisa sentir-se primeiro. Não tenha medo de sair do barco. Criaturas como você não precisam ter medo de recomeçar, nem de afundar. Tenha propósitos em sua vida. Isso ajuda a caminhar com passos mais precisos ou sentir-se com mais leveza. Cadê seu foco? Hein? Cadê o seu discurso de menina 'grande'? Era bonito aquele discurso...mas eu sei que não vai te servir agora. Você não tem mais o 'q' daquela. Você está diferente. E talvez por isso não lhe sirva mais esses 'tipos' de medo que você guarda aí...eles não lhe servem mais.”
E se descabelava quando se ouvia daquele jeito. Era o que tinha dentro dela. Aquilo não era drama. Era dor que lhe empurrava pra fora de si. Ela se doía. Parece incrível, mas aquela linda menina se doía. Ela tentou não se importar com nada disso. Tentou mudar os pensamentos sempre que julgava não suportar. Mas era mais frágil do que todo mundo pensava. E alternava entre o suspiro e o lamento.   Suportava o peso das consequências com peito de aço, mas desmoronava naqueles ombros como quem perdera o chão, e revestia-se de inocência como quem não tem medo de deixar uma fileira de formigas como pista de sua doçura. Não queria parecer uma menina mole. Mas também não conseguia juntar forças pra ser ferro. Na verdade, precisava de colo, de mimo, de música, e pó de pirlim-pim-pim!
Ela acordava pensando nessas coisas. E dormia pesando-as. Mas precisava de lugares de certeza. Não podia passar a vida toda com tantas dúvidas e tanto medo. Não ia passar muito tempo remando um barquinho de papel. Precisava deixar o medo e deixar que fosse encontrada. Feito flor que se permite despetalar pelo vento e exalar perfume no ar. Ela não deixava ninguém saber, mas tinha a alma cheia de trevos de quatro folhas. No fundo ela acreditava que um dia tudo fosse ficar bem.
E decidiu mudar. Continuava cheia de coisa e não podia mais se arriscar num barco furado. E empenhorou o que restava pra ser garantia dela mesma.
Não dá pra saber ainda se ela fez muita coisa. Afinal, ela continua se esvaziado e se enchendo todos os dias. Mas a correria é resultado de uma decisão importante: Ela deixou o barco. E sobrevive.


Publicado na Revista Cruviana


Ivanúcia Lopes

2 comentários:

Carmen Nogueira disse...

Texto lindo! Parabéns...

Greyce kelly disse...

Cada texto que leio seu me surpreende,realmente toca na alma...
Parabéns,continue assim que você chega la !